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HORROR
ou breve estudo sobre a paralisia





Criação, direcção e espaço cénico: John Romão
Textos: Mickael de Oliveira
Interpretação: Bernardo Rocha, João Folgado, Mariana Tengner Barros, Miguel da Cunha
Desenho de luz: José Álvaro Correia
Música: Daniel Romero (.tape.)
Colaboração coreográfica: Elena Córdoba
Colaboração de vestuário: Carlos Sáez Ripoll
Acompanhamento crítico: Paulo Raposo
Fotografias: Susana Paiva
Co-produção: Colectivo 84 / Penetrarte, TNDMII
O Colectivo 84 / Penetrarte é uma estrutura subsidiada pelo Ministério da Cultura - Direcção Geral das Artes

APRESENTAÇÕES
Teatro Nacional D. Maria II (Lisboa): 9 a 26 de Junho 2011 (Link TNDMII)
TAGV - Teatro Académico Gil Vicente (Coimbra): 24 Novembro 2011
CELCIT (Buenos Aires, Argentina): 22 e 23 Março 2013
Espaço Aberto Pierrot Lunar (Belo Horizonte, Brasil): 29 e 30 Março 2013
Teatro Ipanema (Rio de Janeiro, Brasil): 2 e 3 Abril 2013

SINOPSE
Horror interroga a capacidade que temos de paralisar a criação de utopias urgentes e de nos tirar o sono, ao revelar-nos em excesso, em nome da ideologia do progresso e do lucro, os mistérios da fé e do corpo. Propomos, em cena, através de corpos trágicos e festivos, uma incursão pela impossibilidade de nos tornarmos ingénuos perante um cenário político e económico decadente. Edificamos a legitimidade de uma utopia da ingenuidade, não a dos sonsos, mas a dos que procuram regressar a um estado animal e preferem explicado, antes da teoria do gang bang, a origem do universo. Ou viver uma longa amnésia.


CRÍTICAS
“Tudo o que de bom existe em “Horror” – a reação a um estado de facto, a provocação física e intelectual, a energia e a generosidade dos intérpretes e criadores, os aspetos autorreferenciais, a forte dimensão moral – sairia, para usar uma expressão coloquial e economicista, a ganhar.”
(João Carneiro, Expresso Actual, 18/06/2011)

“Este teatro não é apenas político nem reflete tão só uma inquietação ou dor de crescimento juvenil. É um teatro que intervém contra a corrente. Portanto, uma necessidade primária quando a mudança, afinal, apenas sustenta persistentemente a agonia política e social e espiritual da sociedade. (...) Um louvável acto de guerrilha cultural capaz de chocar.”
(Rui Monteiro, Time Out Lisboa, 21/06/2011)


TEXTOS DA FOLHA DE SALA
O corpo está em perigo
Uma das situações que me levou a pensar este espectáculo foi quando, numa pesquisa de websites pornográficos, o Google me propôs um website que fazia conviver vídeos e imagens de pornografia (como a julgamos conhecer) com vídeos e imagens de gente decapitada, esventrada e de corpos ensanguentados, resultantes de acidentes de viação. O que mais me surpreendeu foram os comentários (de prazer) dos anónimos que visitam aquele lugar (de prazer). Os corpos ou objectos parciais ali expostos eram imediatamente dados a ver, ou seja, eram devorados pelo olhar do espectador, escapando a uma “representação”, contrariamente aos “retratos de jovens rapazes” (de 1400 a 1700) que nos apresentam anónimos portadores de um olhar introspectivo e enigmático.
O corpo está em perigo. Perante a sociedade do corpo, em que um filme pornográfico hardcore serve o didactismo para a aprendizagem erótica, o corpo deixa de ser um mistério. O próprio rosto chega a ser, muitas vezes, inconveniente. Vejo como, com a virtualidade mascarada de conhecimento, se foi perdendo o elemento do mistério, numa dissuasão do real para o hiper-real, do corpo para a sua materialização forçada.
Durante 6 semanas de ensaios, trabalhei com quatro jovens intérpretes em torno de uma vertigem da utopia, tentando dar respostas a perguntas que eu antes me sentia incapaz de formular, porque cada ideia e cada objecto me reenviavam a imagem dos seus limites. Esta utopia prende-se com o terreno hostil que é o teatro e que tenta monstruosamente esconder a vergonha através da técnica. Interessou-me colocar o corpo dos intérpretes frente a impossibilidades, trabalhando no estado de fragilidade que nos faz levantar o dedo ou levar as duas mãos à cara, ao constatar o fracasso político e o horror económico actuais do nosso país.
Ao criar uma paisagem de acontecimentos, um lugar onde cabem todos os acidentes, proponho regressar a uma espécie de “origem” do teatro, trabalhando a potência e possessão de que o fracasso, a utopia e a festa são motores, oferecendo a possibilidade do espectador ser penetrado, porque é dentro dele onde, afinal, acontece o teatro.
John Romão (encenador)

Sacha Grey ou a impossibilidade de amar
O que me tem preocupado em todos os textos que tenho escrito ultimamente, é a brutalidade, a frieza, a ironia e a superficialidade com que lidamos (com que eu lido) com a realidade. O espectáculo propõe uma espécie de esperança perversa, ou seja, uma utopia - porque voltar à animalidade é querer regressar a um certo estado de pureza, que poderíamos chamar de ingenuidade.
A brutalidade dos nossos dias é acelerada pelos instrumentos que inventámos para exercermos uma forma de dominação sobre a realidade. Há aqui dois instrumentos fundamentais para nos propiciar a alta velocidade da imagem, da palavra, das narrativas: 1) o desconstrutivismo, uma teoria segundo a qual nenhum fenómeno da nossa realidade é natural, e 2) a internet, plataforma óptima para acentuar a brutalidade – lugar por excelência das micro-narrativas instantâneas. A internet é a solução e o problema. É a liberdade e a coerção. Encontramos tudo e de tudo, mas sempre com a função de nos revelar qualquer coisa que proponha a verdade, que nos tire o sono. A internet é uma montra para toda a exibição: do conhecimento mais recente das ciências aos vídeos porno. E tanto num caso como noutro saímos violentados por conhecermos – uma nova teoria que nos desloca daquilo que sabíamos (e ficamos instáveis), ou um filme pornográfico pós-hardcore em que as actores têm como função vandalizar o outro, seguindo a teoria de Platão sobre a verdade e a pólis. Toda a pornografia é uma proposta para superar a teoria aristotélica, contra a verosimilhança. Aliás, numa óptica judaico-cristã, não consegui ainda responder à pergunta se ainda é possível amar a Sasha Grey.
Propomos, portanto, um horror enquanto perda de ingenuidade, perda da noção de “virgindade” . O horror é, mais do que uma forte reacção momentânea a algo, um estado profundo no qual nos reconhecemos fora dos mistérios, fora do mundo animal, sendo que a juventude é o lugar (per se) que reclama continuar imerso nos mistérios com que viveu durante toda a infância. A juventude, a adolescência, é uma idade (um estado) de grandes fricções, de quedas frequentes, de mudanças físicas, intelectuais, de vontades em acreditar e participar em certas utopias, criando para o equilíbrio, ao mesmo tempo as distopias colectivas, mas também pessoais. Portanto o corpo da juventude é o lugar por excelência do horror (e da política).
Mickael de Oliveira (dramaturgo)